O Canto do Galo (por Rubem Alves)
24/11/2007 às 21:40 | Publicado em Zuniversitas | 8 ComentáriosO próprio Rubem Alves coloca que este texto é uma ‘parábola da Universidade’, eis o motivo de publicá-lo aqui, espero que gostem e reflitam.
Brevemente comentarei um belo livro que li do mesmo autor (Filosofia da Ciência) e que colocarei na seção “Baú de Livros”
“O CANTO DO GALO”
Rubem Alves Filósofo e professor da Unicamp (Faculdade de Educação)
Era uma vez um granjeiro. Era um granjeiro incomum, intelectual e progressista.
Estudou administração, para que sua granja funcionasse cientificamente. Não satisfeito, fez um doutorado em criação de galinhas.
No curso de administração, aprendeu que, num negócio, o essencial é a produtividade. O improdutivo dá prejuízo; deve, portanto, ser eliminado.
Aplicado à criação de galinhas, esse princípio se traduz assim: galinha que não bota ovo não vale a ração que come. Não pode ocupar espaço no galinheiro. Deve, portanto, ser transformada em cubinhos de caldo de galinha.
Com o propósito de garantir a qualidade total de sua granja, o granjeiro estabeleceu um rigoroso sistema de controle da produtividade de suas galinhas. “Produtividade de galinhas” é um conceito matemático que se obtém dividindo-se o número de ovos botados pela unidade de tempo escolhida. Galinhas cujo índice de produtividade fosse igual ou superior a 250 ovos por ano podiam continuar a viver na granja como galinhas poedeiras. O granjeiro estabeleceu, inclusive, um sistema de “mérito galináceo”: as galinhas que botavam mais ovos recebiam mais ração. As galinhas que botavam menos ovos recebiam menos ração.
As galinhas cujo índice de produtividade fosse igual ou inferior a 249 ovos por ano não tinham mérito algum e eram transformadas em cubinhos de caldo de galinha.
Acontece que conviviam com as galinhas poedeiras, galináceos peculiares que se caracterizavam por um hábito curioso. A intervalos regulares e sem razão aparente, eles esticavam os pescoços, abriam os bicos e emitiam um ruído estridente e, ato contínuo, subiam nas costas das galinhas, seguravam-nas pelas cristas com o bico e obrigavam-nas a se agachar. Consultados os relatórios de produtividade, verificou o granjeiro que isso era tudo o que os galos – esse era o nome daquelas aves – faziam. Ovos, mesmo, nunca, jamais, em toda a história da granja, qualquer um deles botara. Lembrou-se o granjeiro, então, das lições que aprendera na escola, e ordenou que todos os galos fossem transformados em cubos de caldo de galinha.
As galinhas continuaram a botar ovos como sempre haviam botado: os números escritos nos relatórios não deixavam margens a dúvidas. Mas uma coisa estranha começou a acontecer. Antes, os ovos eram colocados em chocadeiras e, ao final de vinte e um dias, eles se quebravam e de dentro deles saíam pintinhos vivos. Agora, os ovos das mesmas galinhas, depois de vinte e um dias, não quebravam. Ficavam lá, inertes. Deles não saíam pintinhos. E, se ali continuassem por muito tempo, estouravam e de dentro deles o que saía era um cheiro de coisa podre. Coisa morta.
Aí o granjeiro científico aprendeu duas coisas:
Primeiro: o que importa não é a quantidade dos ovos; o que importa é o que vai dentro deles. A forma dos ovos é enganosa. Muitos ovos lisinhos por fora são podres por dentro.
Segundo: há coisas de valor superior aos ovos, que não podem ser medidas por meio de números. Coisas sem as quais os ovos são coisas mortas”.
Esta parábola é sobre a universidade. As galinhas poedeiras são os docentes. Corrijo-me: docente, não. Porque docente quer dizer “aquele que ensina”. Mas o ensino é, precisamente, uma atividade que não pode ser traduzida em ovos; não pode ser expressa em termos numéricos. A designação correta é pesquisadores, isto é aqueles que produzem artigos e os publicam em revistas internacionais indexadas.
Artigos, como os ovos, podem ser contados e computados nas colunas certas dos relatórios.
As revistas internacionais são os ninhos acreditados. Não basta botar ovos. É preciso botá-los nos ninhos acreditados. São os ninhos internacionais, em língua estrangeira, que dão aos ovos sua dignidade e valor. A comunidade dos produtores de artigos científicos não fala português. Fala inglês.
Como resultado da pressão “publish or perish”, bote ovos ou sua cabeça será cortada, a docência termina por perder o sentido. Quem, numa universidade, só ensina, não vale nada. Os alunos passam a ser trambolhos para os pesquisadores: estes, em vez de se dedicarem à tarefa institucionalmente significativa de botar ovos, são obrigados pela presença de alunos a gastar seu tempo numa tarefa irrelevante: ensino não pode ser quantificado (quem disser que o ensino se mede pelo número de horas/aula é um idiota).
O que está em jogo é uma questão de valores, uma decisão sobre as prioridades que devem ordenar a vida universitária: se a primeira prioridade é desenvolver, nos jovens, a capacidade de pensar, ou se é produzir artigos para atender a exigência da comunidade científica internacional de “publish or perish”.
Eu acho que o objetivo das escolas e universidades é contribuir para o bem estar do povo. Por isso, sua tarefa mais importante é desenvolver, nos cidadãos, a capacidade de pensar. Porque é com o pensamento que se faz um povo. Mas isso não pode ser quantificado como se quantificam ovos botados. Sugiro que nossas universidades, ao avaliar a produtividade dos que trabalham nela, dêem mais atenção ao canto do galo…
In: ALVES, Rubem. Entre a Ciência e a Sapiência. O Dilema da Educação. 6ªed. São Paulo: Ed. Loyola, 2001. p. 67-71.
8 Comentários »
RSS feed for comments on this post. TrackBack URI
Comentários são livres, só não aceito nem publico xingamentos !
Blog no WordPress.com.
Entries e comentários feeds.
[…] texto me lembrou muito um outro, de Rubem Alves, que li no zÉducando, chamado O Canto do Galo. Apesar de ser voltado para a área acadêmica, passa ensinamentos parecidos e definitivamente vale […]
Pingback by Talento: quanto mais, melhor? » jlcarneiro.com— 05/06/2008 #
A lição do granjeiro…
Aproveito um comentário de José Rosa para dar continuidade à linha de “parábola acadêmica” iniciada no meu último post. Não gosto muito de republicar textos, especialmente textos já publicados em outros blogs. Mas, apenas para dar continuid…
Trackback by jlcarneiro.com— 25/11/2010 #
Fiz o comentário abaixo no site do ZeLuis e achei importante registrar também aqui:
—————————————-
Caro ZeLuis,
Observei nesse seu post que em comparação ao meu faltou a parte abaixo destacada.
Quando me aventurei no Mestrado em Educação da Uneb/BA, em uma das primeiras disciplinas a Professora Olívia Mattos nos brindou com este texto para reflexão, digo o texto integral que publiquei no ZEducando.
Quanto à autoria nunca se sabe. Pelo conteúdo do texto abaixo acho que é mesmo do Rubem Alves. Ele toca numa das maiores feridas da nossa já anacrônica Academia e nos faz refletir sobre o que há por trás disso tudo, do “publish or perish”, uma forte questão axiológica !
Para uma simples Pós, um difícil Mestrado ou um complexo Douorado, há que se ter antes de mais nada paciência e QI (o outro), muita paciência e bom QI, depois vem o conhecimento na área e de uma língua (ou duas no caso do Doutorado).
=====================================
Esta parábola é sobre a universidade. As galinhas poedeiras são os docentes. Corrijo-me: docente, não. Porque docente quer dizer “aquele que ensina”. Mas o ensino é, precisamente, uma atividade que não pode ser traduzida em ovos; não pode ser expressa em termos numéricos. A designação correta é pesquisadores, isto é aqueles que produzem artigos e os publicam em revistas internacionais indexadas.
Artigos, como os ovos, podem ser contados e computados nas colunas certas dos relatórios.
As revistas internacionais são os ninhos acreditados. Não basta botar ovos. É preciso botá-los nos ninhos acreditados. São os ninhos internacionais, em língua estrangeira, que dão aos ovos sua dignidade e valor. A comunidade dos produtores de artigos científicos não fala português. Fala inglês.
Como resultado da pressão “publish or perish”, bote ovos ou sua cabeça será cortada, a docência termina por perder o sentido. Quem, numa universidade, só ensina, não vale nada. Os alunos passam a ser trambolhos para os pesquisadores: estes, em vez de se dedicarem à tarefa institucionalmente significativa de botar ovos, são obrigados pela presença de alunos a gastar seu tempo numa tarefa irrelevante: ensino não pode ser quantificado (quem disser que o ensino se mede pelo número de horas/aula é um idiota).
O que está em jogo é uma questão de valores, uma decisão sobre as prioridades que devem ordenar a vida universitária: se a primeira prioridade é desenvolver, nos jovens, a capacidade de pensar, ou se é produzir artigos para atender a exigência da comunidade científica internacional de “publish or perish”.
Eu acho que o objetivo das escolas e universidades é contribuir para o bem estar do povo. Por isso, sua tarefa mais importante é desenvolver, nos cidadãos, a capacidade de pensar. Porque é com o pensamento que se faz um povo. Mas isso não pode ser quantificado como se quantificam ovos botados. Sugiro que nossas universidades, ao avaliar a produtividade dos que trabalham nela, dêem mais atenção ao canto do galo…
Comment by Zé Rosa— 25/11/2010 #
[…] ver seu semelhante… Também achei interessante dois textos, um de Max Gehringer e outro de Rubem Alves, sobre organizações, inclusive da área acadêmica, que exigem pessoas com excesso de […]
Pingback by Retrospectiva 2008 em jlcarneiro.com— 05/02/2012 #
[…] O CANTO DO GALO […]
Pingback by Rubem Alves | ZÉducando— 22/07/2014 #
[…] me fez lembrar do O CANTO DO GALO, do já saudoso Rubem […]
Pingback by Patentear ou publicar, eis a questão ! | ZÉducando— 03/09/2014 #
[…] Júnior, da UFBA. Sobre a propalada ‘produção acadêmica’, me lembrei logo do artigo “O Canto do Galo”, do saudoso Rubem Alves. Confiram […]
Pingback by Ciência, com o Físico Olival Freite Júnior | ZÉducando— 25/05/2015 #
[…] ler esse esclarecedor e atualíssimo artigo, logo me lembrei do magnífico ‘O CANTO DO GALO”, de Rubem Alves e, óbvio, de minhas quatro Pós e do Mestrado inacabado que tentei concluir, […]
Pingback by Artigos científicos estão “superados”: interesses ? | ZÉducando— 21/06/2018 #