De narrativas e de verdades

14/04/2022 às 3:36 | Publicado em Artigos e textos, Zuniversitas | 2 Comentários
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Excelente este artigo publicado no jornal A TARDE, SALVADOR-BA. E haja narrativas… assim como haja verdades !

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A GUERRA E A DESSACRALIZAÇÃO DA NARRATIVA

Instrumento de persuasão nestes tempos de pós-verdade, o uso do substantivo feminino “narrativa”–as aspas são mais do que devidas –, transformou-se em uma poderosa arma de propaganda na guerra entre Rússia e Ucrânia: dependendo da forma e do quadrante onde é vociferado, estabelece, por exemplo, quem é o mocinho ou simplesmente o bandido no conflito, mesmo que, diante da luz da objetividade, se faça quase impossível distinguir um do outro.

Aliás, antes de entrar propriamente no mérito das batalhas de versões de uma guerra anunciada, salta aos olhos como a pronúncia da famosa “narrativa” ganha empáfia no sibilar de qualquer língua.

Cá, por exemplo, a sua apropriação se deu inclusive por parte do presidente da República, inominável, e de seus filhos igualmente degenerados, que vez por outra a adicionam aos seus parcos repertórios vocabulares, provando que a “narrativa” se tornou terra de ninguém.

Apesar de não parecer, por conta da avalanche de “narrativas” que demonizam a Rússia, há quem diga, inclusive sem paixões, que, no tabuleiro da geopolítica, aquele que realmente conta, predomina no momento um empate técnico no conflito, com um pormenor: vai demorar até que seja declarado objetivamente um vencedor, ainda que a humanidade tenha perdido o jogo antecipadamente, como sempre.

Objetivamente, de uma parte, o melhor termômetro para medir o poder de convencimento das batalhas de “narrativas”, é observar o comportamento dos europeus, interessados diretos. Há pouco mais de um mês, para eles, os russos eram a personificação do mal absoluto.

Agora, mais ou menos. Talvez daqui a seis meses, Nicolau, de Milão, venha se sentir à vontade para receber o amigo moscovita Ivan, um exímio pianista que foi obrigado a suspender sua estada na Itália por conta da guerra. Será?

Do outro lado, há notícias dando conta de que a aprovação de Putin supera os 80%. Se a informação for verdadeira, isso quer dizer que, apesar das sanções, as construções “narrativas” por lá estão se mostrando eficazes, e uma velha máxima do país de Lenin, vencedor de quase todas as guerras que combateu, ganhou vida novamente ao sair do mausoléu: “Como a vodca, as guerras vitaminam e levantam o moral dos russos! ”.

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Naturalmente que é impossível não falar das “narrativas” ucranianas. Aliás, elas retroalimentam as “narrativas” do dito mundo livre, comandado pelos EUA, e acabam formando um corpo só, com um detalhe: para além do horror da guerra, os excessos e as distorções “narrativas”, muitas vezes criam uma tragédia dentro da tragédia, e por tabela anulam a dimensão do real.

Diante dos abusos, fundamental se faz debruçar sobre o modus operandi e o consequente poder de disseminação das “narrativas” por parte dos EUA, interessados diretos na guerra.Lá, é tradição o alinhamento automático dos meios de comunicação, que bebem sem pestanejar em fontes governamentais, sejam democratas ou republicanas. Depois, por osmose, tais conteúdos são reproduzidos ipsis litteris no restante do Ocidente, e eis que a “narrativa”, repetida à exaustão, se torna pós-verdade.

Sobre o tema, é sempre bom lembrar que, no sentido da “narrativa”, caíram por terra os argumentos dos EUA e da Inglaterra para justificar a invasão ao Iraque em 2003, cujo escopo era aquele de eliminar um inexistente arsenal de armas de destruição em massa de Saddam Hussein: apesar de desmascarada a ação, inclusive com direito a uma confissão do saudoso Collin Powell, à época graduado político norte-americano, o que ficou no inconsciente coletivo planetário foi a falsa “narrativa” dos vencedores, interessados no petróleo alheio.

Já nestas plagas colonizadas que se dizem ocidentais, mas assim não são consideradas lá fora, o alinhamento dos meios de comunicação coma“matriz” americana chega a ser patético. Aliás, diante do descalabro e da parcialidade “narrativa” praticadas pela dita grande imprensa brasileira em torno da guerra na Ucrânia, fica a sensação de que ela não aprendeu nada com a Operação Lava Jato, da qual fez parte como “sócia”, e o resultado aí está: fome, miséria, mortes e o fantasma do autoritarismo que se materializou com a destruição da política.

À parte a nossa decadência e servilismo, é preciso dizer que, desde há muito, aquilo que foi e ficou, assim se deu por uma questão de narrativa, sem aspas.

Que o digam os gregos e os portugueses, por exemplo, que sobreviveram no nosso imaginário por via da Odisseia (Homero) e de Os Lusíadas (Camões), obras que, independentemente da qualidade literária, serviram para perpetrar um sentido de conquista e afirmar a lógica dos vencedores ou daqueles se arvoraram a tal.

No entanto, com certa pitada de romantismo, não seria exagero afirmar que a contemporaneidade conectada e a canalhice cada vez mais exacerbada dos homens, acabaram por dessacralizar a mística da narrativa, definitivamente sem aspas. E, aquilo que até então era uma verdade só, monolítica, tornou-se fragmentos de verdades, e cada qual pode escolher a sua, inclusive os ucranianos. Ou não?

(Raul Moreira)

FONTE: JORNAL A TARDE, SALVADOR-BA, 11.04.2022

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