A carta: cadê tempo para pintar ?

02/10/2012 às 3:44 | Publicado em Artigos e textos | 3 Comentários
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Eu não havia lido esta carta, mas quando li este artigo, publicado na Revista Vilas Magazine, de agosto deste ano, fiquei com vontade de ler. É poesia em forma de prosa. Também pudera, uma carta de Caimmy para Jorge Amado só poderia ser assim ! Quem quiser clique na continuação deste post para ver a íntegra da carta.

CaimmyJorge


A CARTA  carta

Era uma tarde fria de julho, estranhamente bem fria para os padrões daqui, que não conhecia temperaturas abaixo de 20°. Era uma boa tarde para, aconchegada numa esspreguiçadeira à beira da janela, tomar um chocolate quente; olhar através das vidraças, a luzidia paisagem lavada nas recentes chuvas; ler um romance passado em terras de fog, de fiordes, de brumosas montanhas mágicas, ou sonhar com a serra de Lamartine Babo. Boa também para introverter-se, pensar na vida, no mundo e entregar-se às nostalgias todas, que elas também requerem quietude. Eis aí, talvez o porquê de tanto barulho e hiperatividade humana: não deixar a melancolia encostar, como se fosse sempre um grande mal, como se ocasionalmente não servisse à criação artística e para valorizar a alegria de viver.

A tarde era fria e estava prestes a enveredar pelas sendas da nostalgia quando recebi a carta, que aqueceu o dia e iluminou a alma. Não vinha de um grande amor, nem de amigos, embora me chegasse por intermédio de um deles, via e-mail. Na verdade, não fora escrita para mim, podendo ser tomada por um destes textos que circulam na rede. Não, não era texto construído para Internet. Era verdadeiramente uma carta, uma carta de Dorival Caymmi para Jorge Amado, que não precisava ter a veracidade confirmada, pois o teor, o linguajar, o estado de espírito a transparecer não deixavam dúvidas quanto á linhagem. Ainda assim, para não ser mais uma a cair na armadilha das costumeiras falsidades internéticas, fui atrás de comprovação.

Procurei daqui e dali guiada pelo faro jornalístico. E como quem procura, sempre acha, achei o artigo de Tatiana Mendonça, intitulado “As obrigações de Caymmi e outras artes”, publicado no blog O Purgatório, onde contava que encontrara a carta numa exposição em
homenagem ao centenário de Jorge Amado, no Museu da Língua Portuguesa e impressionada a reproduziu na íntegra após breve reflexão que lhe fora suscitada. De lá foi sendo divulgada em sucessivos sites até virar mensagem de e-mail. Mas o efeito que produziu não se deveu à celebridade do remetente e do destinatário. Mais valia a delícia do estilo, na mesma linha da perfeita simplicidade de suas canções e a poética sabedoria do quê dizia no monólogo em
feitio de bate-papo.

O dizer irradiava afeto, sensibilidade e amor logo no começo ao tratar dos seus bens maiores: a música, o mar, e a mulher de sua vida: Jorge, meu irmão, são onze e trinta da manhã e terminei de compor uma linda canção para Yemanjá pois o reflexo do sol desenha seu manto em nosso mar, aqui na Pedra da Sereia. Quantas canções compus para Janaína,
nem eu mesmo sei, é minha mãe, dela nasci. Talvez Stela saiba, ela sabe tudo, que mulher, duas iguais não existem, que foi que eu fiz de bom para merecê-Ia? Ela te manda um beijo, outro para Zélia e eu morro de saudade de vocês”. Adiante, um pedido da vaidade a soar em notas de risonha peraltice: Quando vierem, me tragam um pano africano para eu fazer
uma túnica e ficar irresistível
.

Em seguida, derramava lirismo no reparo dos azuis, dos cheiros, destas coisas corriqueiras, mas ainda assim, preciosas, em meio ao alegre vadear de amigos, bem à moda do jeito baiano de ser no tempo em que havia diálogos e a gostosa convivência sem pressas e sem medos. Tudo perpassado pelo bom humor de quem está sempre de bem com a vida: Ontem saí com Carybé, fomos buscar Camafeu na Rampa do Mercado, andamos por aí trocando pernas, sentindo os cheiros, tantos, um perfume de vida ao sol, vendo as cores, de azuis contamos mais de quinze e havia um ocre na parede de uma casa, nem te digo. Então ao voltar, pintei um quadro, tão bonito, irmão, de causar inveja a Graciano. de inveja, Carybé quase morreu e Jenner, imagine!, se fartou de elogiar, te juro. Um quadro simples: uma baiana, o tabuleiro com abarás e acarajés e gente em volta.

Então chegava à parte mais interessante, a mais filosófica, quando o missivista falava do seu processo de criação, da sua maneira de pensar e ser, passando lições de sabedoria. Se eu tivesse tempo, ia ser pintor, ganhava uma fortuna. O que me falta é tempo para pintar, compor vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga que tem às pampas sobrando por aí. O tempo que tenho mal chega para viver: visitar
Dona Menininha
, saudar Xangô, conversar com Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra pintar?. Com singeleza e desprendimento, saboreava a existência que vale por si mesma, independente de condições e é sempre extraordinária até nas coisas mais banais. Viver é gozar da companhia dos amigos, é contemplar as belezas é admirar a vida, é degustar estas trivialidades. E para não perder estes pequenos, mas intensos, prazeres que lhe garantia a cota de felicidade diária, abria mão, ou melhor, não tinha tempo, de ganhar dinheiro, mesmo porque, como disse na cantiga, pobre de quem acredita! na glória o no dinheiro / para ser feliz.Quem, hoje em dia, presa da pressa na realidade virtual, onde o único valor cultuado é o dinheiro, entende tudo isso? Com certeza poucos,
mas estes lavam a alma ao ler a carta.

E Caymmi continuava, com o mesmo bom humor, dando notícia, que mais revelava do seu caráter: Sabes que vendi a casa da Pedra da Sereia? Pois vendi. Fizeram um edifício medonho bem em cima dela e anunciaram nos jornais: venha ser vizinho de Dorival Caymmi. Então fiquei retado e vendi a casa, comprei um apartamento na Pituba, vou ser vizinho de James e de João Ubaldo, daquelas duas línguas viperinas, veja que irresponsabilidade a
minha“. E finalizava voltando ao ponto de partida: Mas hoje, antes de me mudar, fiz essa canção para Yemanjá que fala em peixe e em vento, em saveiro e no mestre do saveiro, no mar da Bahia. Nunca soube falar de outras coisas. Dessas e de mulher. Dora, Marina, Adalgisa, Anália, Rosa morena, como vais morena Rosa, quantas outras e todas, como sabes, são a minha Stela com quem um dia me casei te tendo de padrinho. A bênção, meu padrinho, Oxôsst te proteja nessas inglaterras, um beijo para Zélia, não esqueçam de trazer meu pano africano, volte logo, tua casa é aqui e eu sou teu irmão Caymmi.

A carta era ainda prova de que “um outro mundo é possível”, ao menos havia sido nos tempos idos. E como “o passado não passa” conforme concluiu o poeta Ruy Espinheira Filho, este outro mundo permanece não só em quem o viveu, mas também na sociedade, para a qual fica como referência e esperança.

(Gilka Bandeira)


CARTA DE CAYMMI PARA JORGE AMADO.

“Jorge meu irmão, são onze e trinta da manhã e terminei de compor uma
linda canção para Yemanjá pois o reflexo do sol desenha seu manto em
nosso mar, aqui na Pedra da Sereia. Quantas canções compus para
Janaína, nem eu mesmo sei, é minha mãe, dela nasci. Talvez Stela
saiba, ela sabe tudo, que mulher, duas iguais não existem, que foi
que eu fiz de bom para merecê-la? Ela te manda um beijo, outro para
Zélia e eu morro de saudade de vocês. Quando vierem, me tragam um
pano africano para eu fazer uma túnica e ficar irresistível.

Ontem saí com Carybé, fomos buscar Camafeu na Rampa do Mercado,
andamos por aí trocando pernas, sentindo os cheiros, tantos, um
perfume de vida ao sol, vendo as cores, só de azuis contamos mais de
quinze e havia um ocre na parede de uma casa, nem te digo. Então ao
voltar, pintei um quadro, tão bonito, irmão, de causar inveja a
Graciano. De inveja, Carybé quase morreu e Jenner, imagine!, se fartou
de elogiar, te juro. Um quadro simples: uma baiana, o tabuleiro com
abarás e acarajés e gente em volta. Se eu tivesse tempo, ia ser
pintor, ganhava uma fortuna. O que me falta é tempo para pintar,
compor vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com
pressa é aquela droga que tem às pampas sobrando por aí. O tempo que
tenho mal chega para viver: visitar Dona Menininha, saudar Xangô,
conversar com Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como
investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir
Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas
outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra pintar?

Quero te dizer uma coisa que já te disse uma vez, há mais de vinte
anos quando te deu de viver na Europa e nunca mais voltavas: a Bahia
está viva, ainda lá, cada dia mais bonita, o firmamento azul, esse mar
tão verde e o povaréu. Por falar nisso, Stela de Oxóssi é a nova
iyalorixá do Axé e, na festa da consagração, ikedes e iaôs, todos na
roça perguntavam onde anda Obá Arolu que não veio ver sua irmã subir
ao trono de rainha? Pois ontem, às quatro da tarde, um pouco mais ou
menos, saí com Carybé e Camafeu a te procurar e não te encontrando,
indagamos: que faz ele que não está aqui se aqui é seu lugar? A lua de
Londres, já dizia um poeta lusitano que li numa antologia de meu
tempo de menino, é merencória. A daqui é aquela lua. Por que foi ele
para a Inglaterra? Não é inglês, nem nada, que faz em Londres? Um bom
filho-da-puta é o que ele é, nosso irmãozinho.

Sabes que vendi a casa da Pedra da Sereia? Pois vendi. Fizeram um
edifício medonho bem em cima dela e anunciaram nos jornais: venha ser
vizinho de Dorival Caymmi. Então fiquei retado e vendi a casa, comprei
um apartamento na Pituba, vou ser vizinho de James e de João Ubaldo,
daquelas duas ‘línguas viperinas, veja que irresponsabilidade a minha.

Mas hoje, antes de me mudar, fiz essa canção para Yemanjá que fala em
peixe e em vento, em saveiro e no mestre do saveiro, no mar da Bahia.
Nunca soube falar de outras coisas. Dessas e de mulher. Dora, Marina,
Adalgisa, Anália, Rosa morena, como vais morena Rosa, quantas outras
e todas, como sabes, são a minha Stela com quem um dia me casei te
tendo de padrinho. A bênção, meu padrinho, Oxóssi te proteja nessas
inglaterras, um beijo para Zélia, não esqueçam de trazer meu pano
africano, volte logo, tua casa é aqui e eu sou teu irmão Caymmi”.

3 Comentários »

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  1. Rosa
    Como diz a velha piada (ou será fato?): a Bahia tem três ritmos: o lento, o muito lento e o Dorival Caymmi …
    Quem me dera ser assim. Acho que a sede do slow movement deveria ser na Bahia, por questão de respeito à baianidade.
    abraço, Panta

  2. Amigo Panta,
    Muito bom essa lembrança, aqui é assim mesmo. Mas o povo trabalha, igual a todo canto. Mas sabem curtir mais a vida que em qualquer outro lugar. Bela sugestão quanto à sede do movimento slow movement !

    abs,

  3. […] Dois em um (charge e música). Uma singela homenagem ao bom baiano (nosso Buda-Nagô) pelos seus 100 anos ! Salve Caymmi ! […]


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