"Criei há 25 anos o que Musk fez agora", diz Miguel Nicolelis

01/04/2024 às 2:16 | Publicado em Artigos e textos, Zuniversitas | Deixe um comentário
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Vale a pena ler este artigo e a entrevista nele contida para que possamos tirar nossas próprias conclusões.

No meu caso, depois dos livros que li e das aulas que presenciei, tenho certeza de que, caso Nicolelis tivesse nascido em outro país, possivelmente acima da linha do equador e na Europa ou EUA, já teria sido agraciado com um Prêmio Nobel.


"Criei há 25 anos o que Musk fez agora", diz Miguel Nicoleli

O Professor Emérito da Universidade de Duke fala à Forbes Brasil sobre o avanço das interfaces cérebro-máquina não-invasivas e a falta de "compromisso ético" de Elon Musk com a ciência

Divulgação

O brasileiro Miguel Nicolelis é um dos maiores nomes da neurociência mundial. O médico, doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e Ph.D em Fisiologia e Biofísica pela Universidade de Hahnemann, nos Estados Unidos, foi professor e pesquisador por mais de 30 anos no departamento de neurociência e engenharia biomédica da Universidade de Duke — que figura constantemente no topo das listas de melhores universidades do mundo.

No Brasil, o trabalho de Nicolelis ganhou destaque durante a Copa do Mundo de 2014, quando ele liderou o projeto que permitiu que um jovem paraplégico chutasse a bola na abertura da competição. O chute simbólico, assistido por mais de um bilhão de pessoas, foi possível graças a um exoesqueleto alimentado por uma interface cérebro-máquina.

Recentemente, Elon Musk ganhou as manchetes mundo afora ao implantar um chip em um paciente da Neuralink, sua startup de estudos neurológicos. No anúncio oficial, a empresa publicou: “O primeiro humano recebeu um implante da Neuralink”. No entanto, o assunto repercutiu como se o bilionário fosse pioneiro na área — título que Miguel Nicolelis reivindica.

“Eu criei há 25 anos as técnicas de implante para interfaces cérebro-máquina. Musk disse que o paciente dele foi bem-sucedido e controlou um cursor de computador, desculpa, mas meu laboratório fez exatamente a mesma com onze pacientes em 2004. E tem quem acredite que ele é super revolucionário”, comenta o neurocientista brasileiro.

Atualmente, após a aposentadoria do cargo acadêmico na universidade norte-americana, o cientista decidiu ampliar seu projeto pessoal, o Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro, que pretende ajudar mais de um bilhão de pessoas com doenças medulares e neurológicas.

Reprodução

Em entrevista à Forbes Brasil, Miguel Nicolelis compartilha algumas novidades do instituto, reforça a importância da ciência para o avanço da medicina e provoca reflexões sobre o papel da tecnologia:

FB: Por que você escolheu trabalhar com a interface cérebro-máquina não-invasiva? 
MN: Há 25 anos, no meu laboratório, eu criei as técnicas de implante para interfaces cérebro-máquina [à época testadas em animais] para entender como elas deveriam funcionar.

Entretanto, em 2014, quando eu voltei para o Brasil durante o projeto da Copa do Mundo, eu entrevistei diversos pacientes e, junto com a minha equipe, cheguei à conclusão quase unânime de que eles queriam voltar a andar, mas sem se submeter a uma cirurgia.

Então, começamos a quebrar a cabeça para construir alternativas não-invasivas. E nós conseguimos ir além, as interfaces cérebro-máquina não-invasivas que testamos conseguiram ajudar os pacientes de maneira crônica. Eles recuperaram movimentos de forma parcial, voltaram a sentir determinadas partes do corpo, algo que nunca tinha sido feito em décadas de pesquisa e tratamentos de lesões medulares.

De lá para cá, comecei a concretizar a ideia de que, para escalar esse tratamento, para que a tecnologia possa atingir o máximo possível de pacientes, não tem como trabalhar com técnicas invasivas. Esse é o primeiro mandamento da Medicina, tudo o que você fizer não pode colocar a pessoa em mais risco do que ela já está.

FB: De onde surgiu o interesse de Elon Musk pela interface cérebro-máquina?
MN: Nós, cientistas, precisamos esperar anos para que as revistas científicas publiquem nosso trabalho. Mas aí chegam pessoas como o Elon Musk, que só publicam algumas linhas nas redes sociais, sem nenhuma informação, nenhum dado, nenhuma referência, e as pessoas acreditam veementemente. É uma injustiça com os verdadeiros profissionais, cientistas e pesquisadores.

Quando ele fala que o paciente dele foi bem-sucedido e controlou um cursor de computador, desculpa, mas meu laboratório fez exatamente a mesma coisa há 20 anos com onze pacientes. E tem quem acredite que isso é super revolucionário.

Outra questão, além da falta de embasamento, é a mercantilização da pesquisa científica. Hoje virou moda na comunidade científica criar startups, só que isso é um problema. Porque a prioridade deixa de ser o estudo e passa a ser o dinheiro. Eles publicam casos de um paciente para conseguir levantar investidores. Só que isso está errado. Na ciência, nós não podemos afirmar nada a partir de um paciente.

Essa cultura de startups cria um grande conflito de interesses. Hoje, se você publica algo que refuta a tese de uma startup, você pode destruir um negócio de milhões de dólares.

FB: Quais são os riscos dessa mercantilização da ciência?

MN: Olha, tem muita ideia boa que vai funcionar e já está funcionando. Mas tem coisa que é fantasia de bilionário. Temos que saber separar. Não existe nenhuma mágica. E, por exemplo, para uma família que tem uma pessoa com deficiência, é muito difícil acreditar em algo fantasioso.

Quando o Elon Musk fala que ele vai usar um chip para que pessoas possam jogar videogame com o pensamento, ou fazer upload de conteúdo no cérebro, ele está inspirado em filmes de ficção científica. Essas suposições vão contra as leis da física, o cérebro não é um computador, ele é uma máquina analógica, biológica e orgânica.

E nenhum sistema regulatório do mundo vai aprovar que façam implantes cerebrais em pessoas saudáveis. Nenhum bom neurocirurgião vai querer fazer isso. Existem riscos sérios de infecção, rejeição e até mesmo do dispositivo parar de funcionar. Eu sei disso porque no meu laboratório nós temos o recorde mundial de duração, foram nove anos de funcionamento de chips implantados em macacos.

FB: Como será o futuro da ciência e tecnologia? 

MN: Nós criamos quase que um culto à tecnologia, e as pessoas têm pouco conhecimento quando elas usam essa palavra. Desde que a tecnologia se associou à modernidade, a transformações de grande impacto, ela ficou dissolvida no imaginário coletivo.

E isso não é necessariamente verdade, a tecnologia não vai resolver os problemas dos humanos, os humanos vão ter que resolver seus próprios problemas. A tecnologia não é um milagre. Ela tem que ser vista com um olhar crítico e ético.

No caso da medicina, é óbvio que a tecnologia ajuda, muitas ferramentas foram fundamentais para o desenvolvimento da área, mas não é porque você inventa algo inédito que isso pode ser implementado na vida clínica e cotidiana dos médicos. Se o mecanismo não oferecer segurança, se não for eficiente e se não for acessível do ponto de vista de custo, ele não vai ser incorporado. Esses três critérios têm que ser preenchidos de maneira categórica.

FB: O que é o Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro? 
Miguel Nicolelis: Depois da pandemia, no final do período crítico, eu decidi sair da Duke e criar o Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro, que tem sede em São Paulo (Brasil), na Carolina do Norte (EUA), e agora em Milão (Itália). 

No início de março, junto com o hospital IRCCS San Raffaele, o maior hospital privado da Itália, nós anunciamos o primeiro polo de neurotecnologia institucional da Europa. Esse é só o começo, a meta é levar hubs como esse para todos os continentes.

Nosso objetivo é coordenar e disseminar os protocolos de tecnologias não-invasivas por diferentes partes do mundo para tratar pacientes com doenças neurológicas e medulares, como paraplegia, Parkinson, derrame, depressão e ansiedades crônicas e assim por diante. Segundo a OMS, quase dois bilhões de pessoas no mundo sofrem com esse tipo de doença. Então optamos por um tipo de tratamento escalável, eficaz e duradouro — o que não é possível com técnicas invasivas.

FONTE: https://forbes.com.br/forbes-tech/2024/03/criei-ha-25-anos-o-que-musk-fez-agora-diz-miguel-nicolelis/

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