Rubem Alves

22/07/2014 às 3:50 | Publicado em Artigos e textos, Baú de livros, Zuniversitas | 6 Comentários
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Mais uma grande perda para este país e para o mundo: Rubem Alves. Ele já esteve aqui por várias oportunidades. Reproduzo abaixo dois de seus mais interessantes textos e recomendo fortemente o livro FILOSOFIA DA CIÊNCIA.

FilosofiaCiencia


O CANTO DO GALO  rubem-alves

Rubem Alves Filósofo e professor da Unicamp (Faculdade de Educação)

Era uma vez um granjeiro. Era um granjeiro incomum, intelectual e progressista.

Estudou administração, para que sua granja funcionasse cientificamente. Não satisfeito, fez um doutorado em criação de galinhas.

No curso de administração, aprendeu que, num negócio, o essencial é a produtividade. O improdutivo dá prejuízo; deve, portanto, ser eliminado.

Aplicado à criação de galinhas, esse princípio se traduz assim: galinha que não bota ovo não vale a ração que come. Não pode ocupar espaço no galinheiro. Deve, portanto, ser transformada em cubinhos de caldo de galinha.

Com o propósito de garantir a qualidade total de sua granja, o granjeiro estabeleceu um rigoroso sistema de controle da produtividade de suas galinhas. “Produtividade de galinhas” é um conceito matemático que se obtém dividindo-se o número de ovos botados pela unidade de tempo escolhida. Galinhas cujo índice de produtividade fosse igual ou superior a 250 ovos por ano podiam continuar a viver na granja como galinhas poedeiras. O granjeiro estabeleceu, inclusive, um sistema de “mérito galináceo”: as galinhas que botavam mais ovos recebiam mais ração. As galinhas que botavam menos ovos recebiam menos ração.

As galinhas cujo índice de produtividade fosse igual ou inferior a 249 ovos por ano não tinham mérito algum e eram transformadas em cubinhos de caldo de galinha.

Acontece que conviviam com as galinhas poedeiras, galináceos peculiares que se caracterizavam por um hábito curioso. A intervalos regulares e sem razão aparente, eles esticavam os pescoços, abriam os bicos e emitiam um ruído estridente e, ato contínuo, subiam nas costas das galinhas, seguravam-nas pelas cristas com o bico e obrigavam-nas a se agachar. Consultados os relatórios de produtividade, verificou o granjeiro que isso era tudo o que os galos – esse era o nome daquelas aves – faziam. Ovos, mesmo, nunca, jamais, em toda a história da granja, qualquer um deles botara. Lembrou-se o granjeiro, então, das lições que aprendera na escola, e ordenou que todos os galos fossem transformados em cubos de caldo de galinha.

As galinhas continuaram a botar ovos como sempre haviam botado: os números escritos nos relatórios não deixavam margens a dúvidas. Mas uma coisa estranha começou a acontecer. Antes, os ovos eram colocados em chocadeiras e, ao final de vinte e um dias, eles se quebravam e de dentro deles saíam pintinhos vivos. Agora, os ovos das mesmas galinhas, depois de vinte e um dias, não quebravam. Ficavam lá, inertes. Deles não saíam pintinhos. E, se ali continuassem por muito tempo, estouravam e de dentro deles o que saía era um cheiro de coisa podre. Coisa morta.

Aí o granjeiro científico aprendeu duas coisas:

Primeiro: o que importa não é a quantidade dos ovos; o que importa é o que vai dentro deles. A forma dos ovos é enganosa. Muitos ovos lisinhos por fora são podres por dentro.

Segundo: há coisas de valor superior aos ovos, que não podem ser medidas por meio de números. Coisas sem as quais os ovos são coisas mortas”.

Esta parábola é sobre a universidade. As galinhas poedeiras são os docentes. Corrijo-me: docente, não. Porque docente quer dizer “aquele que ensina”. Mas o ensino é, precisamente, uma atividade que não pode ser traduzida em ovos; não pode ser expressa em termos numéricos. A designação correta é pesquisadores, isto é aqueles que produzem artigos e os publicam em revistas internacionais indexadas.

Artigos, como os ovos, podem ser contados e computados nas colunas certas dos relatórios.

As revistas internacionais são os ninhos acreditados. Não basta botar ovos. É preciso botá-los nos ninhos acreditados. São os ninhos internacionais, em língua estrangeira, que dão aos  ovos sua dignidade e valor. A comunidade dos produtores de artigos científicos não fala português. Fala inglês.

Como resultado da pressão “publish or perish”, bote ovos ou sua cabeça será cortada, a docência termina por perder o sentido. Quem, numa universidade, só ensina, não vale nada. Os alunos passam a ser trambolhos para os pesquisadores: estes, em vez de se dedicarem à tarefa institucionalmente significativa de botar ovos, são obrigados pela presença de alunos a gastar seu tempo numa tarefa irrelevante: ensino não pode ser quantificado (quem disser que o ensino se mede pelo número de horas/aula é um idiota).

O que está em jogo é uma questão de valores, uma decisão sobre as prioridades que devem ordenar a vida universitária: se a primeira prioridade é desenvolver, nos jovens, a capacidade de pensar, ou se é produzir artigos para atender a exigência da comunidade científica internacional de “publish or perish”.

Eu acho que o objetivo das escolas e universidades é contribuir para o bem estar do povo. Por isso, sua tarefa mais importante é desenvolver, nos cidadãos, a capacidade de pensar. Porque é com o pensamento que se faz um povo. Mas isso não pode ser quantificado como se quantificam ovos botados. Sugiro que nossas universidades, ao avaliar a produtividade dos que trabalham nela, dêem mais atenção ao canto do galo…

In: ALVES, Rubem. Entre a Ciência e a Sapiência. O Dilema da Educação. 6ªed. São Paulo: Ed. Loyola, 2001. p. 67-71.


A MENINA E O PÁSSARO

Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo.

Ele era um pássaro diferente de todos os demais: Era encantado. Os pássaros comuns, se a porta da gaiola estiver aberta, vão embora para nunca mais voltar.

Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades…

Suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava.

Certa vez, voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão.

“- Menina, eu venho de montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco de encanto que eu vi, como presente para você…”.

E assim ele começava a cantar as canções e as estórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro.

Outra vez voltou vermelho como fogo, penacho dourado na cabeça.

“… Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga.
Minhas penas ficaram como aquele sol e eu trago canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.”

E de novo começavam as estórias.

A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isso voltava sempre.

Mas chegava sempre uma hora de tristeza.

“- Tenho que ir”, ele dizia.

“- Por favor não vá, fico tão triste, terei saudades e vou chorar….”.

“- Eu também terei saudades”, dizia o pássaro. “– Eu também vou chorar.Mas eu vou lhe contar um segredo: As plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios… E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera da volta, que faz com que minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudades. Eu deixarei de ser um pássaro encantado e você deixará de me amar.

Assim ele partiu. A menina sozinha chorava de tristeza à noite, imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa destas noites que ela teve uma idéia malvada.

“- Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá; será meu para sempre. Nunca mais terei saudades, e ficarei feliz”.

Com estes pensamentos comprou uma linda gaiola, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera.

Finalmente ele chegou, maravilhoso, com suas novas cores, com estórias diferentes para contar.

Cansado da viagem, adormeceu.

Foi então que a menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola para que ele nunca mais a abandonasse. E adormeceu feliz.

Foi acordar de madrugada, com um gemido triste do pássaro.

“- Ah! Menina… Que é que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias…”.

Sem a saudade, o amor irá embora…

A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas isto não aconteceu. O tempo ia passando, e o pássaro ia ficando diferente. Caíram suas plumas, os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram- se num cinzento triste. E veio o silêncio; deixou de cantar.

Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava. E de noite ela chorava pensando naquilo que havia feito ao seu amigo…
Até que não mais agüentou.

Abriu a porta da gaiola.

“- Pode ir, pássaro, volte quando quiser…”.

“- Obrigado, menina. É, eu tenho que partir. É preciso partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro da gente. Sempre que você ficar com saudades, eu ficarei mais bonito.
Sempre que eu ficar com saudades, você ficará mais bonita. E você se enfeitará para me esperar…”

E partiu. Voou que voou para lugares distantes. A menina contava os dias, e cada dia que passava a saudade crescia.

“- Que bom, pensava ela, meu pássaro está ficando encantado de novo…”.

E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos; e penteava seus cabelos, colocava flores nos vasos…

“- Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje…

Sem que ela percebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado como o pássaro.
Porque em algum lugar ele deveria estar voando. De algum lugar ele haveria de voltar.

AH! Mundo maravilhoso que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama…

E foi assim que ela, cada noite ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento.

– Quem sabe ele voltará amanhã….

E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.

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